“Sonha, poeta, sonha! Ali sentado
No tosco assento da janela antiga,
Apóia sobre a mão a face pálida
Sorrindo - dos amores à cantiga.”
Na história da literatura brasileira Álvares de Azevedo é, sem dúvida nenhuma, uma das figuras centrais e dominantes.
Morrendo muito moço, com pouco mais de vinte anos, e autor a bem dizer inédito, apenas com um belo discurso e algumas páginas necrológicas publicadas, deixava entretanto, no seu rico, tumultuoso e apressado espólio, muitas páginas imortais, livros ainda por ordenar ou terminar, mas que iriam abrir em nossas letras uma fase inteiramente desconhecida.
Aquela quase criança morta, dentro de um ano depois surpreenderia os contemporâneos com uma obra viva e original, que até hoje lemos e relemos com emoção. Machado de Assis, que a viu sair dos prelos, disse dela que “era a boa nova dos poetas”. Sim, a Lira dos Vinte Anos foi de fato isso. Porque veio quebrar os moldes da poesia nacional, interrompendo-a com acentos jamais ouvidos entre nós, como se de repente um pássaro estranho, trazido ás nossas plagas americanas, aqui desesperadamente começasse a desferir um novo e belo canto harmonioso.
Filho atormentado do seu tempo, conhecendo-o e não lhe fugindo aos influxos, tudo que tinha de angustioso, de cético, de irônico, de amargo ou de melancólico, a sua profunda e aguda sensibilidade, irmã gêmea daquelas que expressavam em versos eternos os eternos estados da alma nesse mundo de inquietação e dúvida, absorveu completamente, mas sem perder o próprio cunho e marca pessoal inconfundível.
Gonçalves Dias tinha sido até ali a mais alta expressão da lírica nacional. Mas o extraordinário nos dera a sentir sobretudo vozes graves, compassadas e austeras, vozes antigas e difíceis, vozes clássicas enfim, que nos deixaram a impressão de Sá de Miranda ou Bernardim Ribeiro a decantarem através das nossas terras jovens o sabiá choroso no ramo da palmeira.
Álvares de Azevedo era o grito da libertação, era o sinal dos tempos, contava-nos o mal do século. Era Byron, Shelley, Musset, Vigny, mas sem ser cópia de nenhum deles. Do seu recente túmulo ainda úmido e coberto de flores amadas, as amarelas alamandas cor de ouro, o rapaz, que nele palidamente se encerrava, dirigia à mocidade patrícia a mais bela e criadora das mensagens – a da renovação da poesia nacional, ensinando-lhe uma forma leve e diáfana como a das névoas transparentes com que ele envolvia na orla das praias os anjos dormentes da sua fantasia. E ao mesmo tempo lhe apontava temas inexplorados, lhe revelava motivos de inspiração aqui jamais sabidos. Amphyon estava a construir de novo, porém não praticamente cidades. Mais profundamente, construía mundos interiores, povoados de figuras dolorosas, cheias de ânsias, hesitações, blasfêmias e sarcasmos.
O pessimismo, a misantropia, o amor desesperado, as coisas excêntricas, as predileções românticas, os instintos indisciplinados, sem perda do mais profundo sentimento poético, do lirismo mais autêntico – pela primeira vez se encarnavam entre nós em Álvares de Azevedo.
“Vem, anjo, minha donzela,
Minha alma, meu coração!
Que noite, que noite bela!
Como é doce a viração!
E entre os suspiros do vento
Da noite ao mole frescor
Quero viver um momento,
Morrer contigo de amor!”
Dois anos depois o prosador fazia também a sua estréia. Aquele pequenino túmulo sagrado continuava a falar coisas divinas. E se verificava então que não fora somente um poeta excepcional que se perdera. Também se perdera um agudo e fino autor de teatro, como de outro de igual gênero jamais conseguimos até hoje alcançar; um narrador prodigioso de contos fantásticos e terríveis; um prosador numeroso, cheio de arranques magníficos; o estofo afinal de um crítico de tão rara agudeza em tão jovem idade.
“Oh! Deixai-me fumar o meu charuto!”
“Descansem o meu leito solitário
Na floresta dos homens esquecida,
À sombra de uma cruz e escrevam nela:
- Foi poeta – sonhou – e amou na vida.”
Álvares de Azevedo foi ultra-romântico porque toda sua obra transpira byronismo, satanismo, paixões exasperadas, saudades... Enfim, ingredientes que resultaram nessa obra quase sem fôlego escrita em tão pouco tempo.
Mas é preciso tomar um pouco de cuidado ao ler o Maneco (apelido familiar de nosso poeta). Se por um lado Byron foi sua mola propulsora, por outro não se pode passar por cima de uma das maiores contribuições desse poeta à literatura brasileira: ele foi um dos primeiros a utilizar a ironia como técnica poética e a incorporar à sua poesia a descrição de objetos cotidianos como o charuto, a lamparina, o conhaque, sua cama, seus livros. Era um banho de concretude e prosaísmo num período onde, para a literatura, tudo era fluido e esfumacento.
Entre o Indianismo de Gonçalves Dias (ainda tão amarrado ao Classicismo) e o engajamento político-literário dos abolicionistas republicanos, situam-se alguns poetas cuja poesia costuma ser reconhecida pelo intimismo, saudosismo e satanismo, temas caracterizadores da poesia da chamada segunda geração romântica. Em suma, uma poesia introspectiva no conteúdo e livre na forma.
Álvares de Azevedo é o maior dos poetas que tão bem caracterizaram essa fase aguda de nosso Romantismo, talvez exatamente por ter rompido um pouco o estereótipo ultra-romântico. Apesar de ter escrito poesias lacrimosas, melosas, tão carregadas de spleen, demonstrou uma veia sarcástica e brincalhona em boa parte de sua obra.
Brasileirismo malandro
“Eu durmo e vivo ao sol como um cigano,
Fumando meu cigarro vaporoso;
Nas noites de verão namoro estrelas;
Sou pobre, sou mendigo e sou ditoso!”
Surgido e desenvolvido no período da independência e de afirmação nacional, o Romantismo parece ligado às idéias verde-amarelas de brasilidade. Assim, falar em Romantismo é, de alguma maneira, falar também em nacionalismo. Mesmo porque o sentimento nacional era geral, ocorrendo não só na literatura brasileira como também na literatura (e política) européia. Vários intelectuais europeus, aliás, tiveram importante papel na formação do Romantismo e dos românticos brasileiros: Almeida Garrett, Alexandre Herculano, Ferdinand Denis e outros.
Mas com Álvares de Azevedo a coisa foi diferente. Ou parece ter sido, à primeira vista. Mesmo que alguns de seus textos revelem pronunciamentos brasileiros, como o discurso proferido por ocasião da instalação da Sociedade Acadêmica de Ensaio Filosófico, onde defende a necessidade de uma filosofia e literatura brasileiras, seus poemas mais conhecidos estão voltados para o cenário europeu, impregnados de imagens byronianas e shakespereanas, do céu da Itália – em suma, de um mundo distante das coisas do Brasil. Assim é que as personagens de Noite na Taverna, sem exclusão, vivem suas aventuras em terras e mares europeus, ora em castelos italianos e espanhóis, ora em fragatas inglesas.
Teria assim rumado em sentido contrário à tendência geral do Romantismo?
Aparentemente sim. Mas apenas aparentemente. Ocorre que o brasileirismo de Álvares de Azevedo se deu de outra maneira, não através da celebração de índios, palmeiras e onças, mas pelas vias do sarcasmo e da ironia, da descrição de suas coisas (idéias) íntimas, da sugestão da malandragem. Homem da cidade, não conheceu o Brasil floresta, mas a emergência do Brasil urbano. É aí um precursor. Seus melhores escritos tratam de um Brasil próprio de estudante de Direito, afeito à galhofa e à brincadeira.
Desta maneira, Álvares de Azevedo não só impregnou de brasilianismo alguns de seus textos, como foi dos primeiros a incorporar o caráter cordial do brasileiro, posteriormente tão celebrado na literatura.
Que mimo! Que rosa! Que filha de Deus!
“És tão doentia!
Não corras assim!
Donzela, onde vais?
Tem pena de mim!”
Um dos elementos mais constantes nos versos de Álvares de Azevedo foi a mulher. Ora virgem adormecida, pálida, inocente, inatingível objeto, ora prostituta da pior estirpe, como se ouve de Satã, em Macário (“Têm uma lepra que ocultam no sorriso. Bufarinheiras de infância dão em troco do gozo o veneno da sífilis. Antes amar uma lazarenta!”), as mulheres povoam o universo alvaresiano numa obsessão adolescente. Como adolescente é o caráter onírico e irreal (além de irrealizável) das cenas em que participam essas figuras mágicas. Foi, aliás, a constante da não realização do desejo em suas obras um dos fatores que constituíram o mito da castidade em Álvares de Azevedo:
“Meu Deus! Por que sonhei, e assim por ela
Perdi a noite ardente;
Se devia acordar dessa esperança,
E o sonho era demente?...”
Mas nem só em mulheres pensava Álvares de Azevedo. Versejou ainda sobre um outro tema, talvez com igual constância: a morte. Uma espécie de prenúncio do trágico desfecho de sua vida; tema que o tornaria ainda mais “romântico”, pois trazia em si a expectativa da morte, como bem exemplificam os antológicos “Se eu morresse amanhã” e “Lembrança de Morrer”. Morte que se transfigura ainda nas palavras pálido, palor, palidez, macilento, presente em praticamente todos os poemas e páginas de prosa, transmitindo à obra e ao autor um aspecto doentio.
Uma outra maneira de o poeta aproximar-se da morte: o gosto pelo macabro, fantasmagórico, tão bem expressos em O Conde Lopo e Noite na Taverna. Nessas passagens, povoadas de cadáveres, caveiras, castelos fantásticos, e principalmente do espírito de Lord Byron, Álvares de Azevedo, mesmo reproduzindo um estilo de época, caracteriza bem o tédio e o spleen românticos e sua proximidade com a morte.
(Ana Marcia e Priscila Santos-RJ / 1º SEM. 2008)